sábado, 9 de julho de 2011

Laufeyson


Laufeyson

            O homem de sobretudo marrom permanecia quieto sob a chuva. As gotas grandes e abundantes começavam a encharcar sua roupa, mas mesmo assim ele não procurava abrigo. Protegia-se da água meramente colocando as mãos dentro dos bolsos e levantando a gola do casaco. A chuva caía no chão de terra, fazendo com que grãos de areia saltassem e colassem em seus sapatos, deixando-os sujos, mas mesmo assim ele não parecia se importar.

            Ninguém saberia dizer a quanto tempo estava parado ali, encarando o portão aberto do cemitério de Heaven West. Alguns poderiam dizer que estava ali havia horas, outros não o teriam percebido até então. Porém, todos os que o viam não podiam deixar de sentir uma estranha familiaridade com aquela figura alta e magra. Uma familiaridade periférica, como um deja vu. Nada que incomodasse realmente, apenas aquele tipo de pressentimento que as vezes nos ocorre e que longo em seguida é completamente esquecido.

            Mary, a garçonete do bar situado em frente ao cemitério, não desgrudava os olhos do estranho. Enquanto limpava o balcão com um pano sujo, mantinha seus olhos sobre a figura encapotada na chuva. Era quase hipnótico olhar aquela cena. As outras pessoas no bar conversavam distraidamente, mas todos, em maior ou em menor grau, estavam curiosos sobre o estranho na chuva. Isaac, o velho proprietário do bar, aproxima-se e dá um cutucão em Mary.

- Mary! Atenda aos clientes – diz Isaac.

- Ai! Eu estou atendendo, seu Isaac... – protesta a garçonete.

            Isaac acompanha os olhos da garçonete e vê o homem de sobretudo.

- Quem é aquele? – pergunta o velho.

- Algum maluco, com certeza. Só sendo doido pra ficar parado debaixo dessa água toda... – resmunga Mary desviando o olhar e começando a arrumar alguns copos.

            O dono do bar passa os dedos pelo bigode farto, num gesto conhecido pelos freqüentadores. Ele fazia isso sempre que ficava curioso. Era praticamente um cacoete.

- É alguém da cidade? Não reconheço... – diz Isaac estreitando os olhos, numa vã tentativa de enxergar melhor.

- Não. Pelo menos ninguém conhece... – diz Mary com displicência levantando uma bandeja com cinco canecas de chopp cheias.

- Pode ser algum maluco mesmo... – Isaac volta-se novamente para o homem de sobretudo.

              Mas ele não estava mais lá.



              Dentro do cemitério, as passarelas estavam tomadas pelas folhas secas que caíam durante a pesada chuva. Pelas canaletas, pequenos rios escorriam, levando folhas e gravetos até a boca de esgoto mais próxima. Em breve estariam entupidas. O estranho caminhava calmamente, com destino definido. O som da chuva abafava qualquer ruído, então nem mesmo seus passos eram audíveis.

            O estranho dobrou algumas vezes pelo caminho até chegar em determinada área do cemitério. Esta ala era bem mais mal-cuidada do que o restante. As lápides tinham uma aparência suja e abandonada. O homem de sobretudo parou e olhou em volta, como se certificasse de estar só naquele local. Depois, decidido, agachou-se em frente a uma lápide pequena.

            Estendeu a mão e agarrou as ervas que encobriam a lápide. Arrancou-as sem dificuldade, revelando o nome inscrito no mármore.

            GERTRUDES GRIMM
            Amada mãe
            1950 – 1997


            O homem balança a cabeça e deixa escapar um sorriso, como se estivesse se divertindo. Mas logo o sorriso é substituído por uma expressão determinada. Seus olhos possuem um brilho antigo e endurecido e, com uma expressão grave, ele começa a rabiscar com o dedo sobre a grama do túmulo, formando estranhos sinais. Seus gestos são rápidos e firmes e onde sua mão magra toca, a grama desaparece, dando lugar a um sulco.    Terminado o desenho, ele faz um gesto amplo com a mão sobre o conjunto. Num instante, as linhas brilham, variando de um amarelo intenso a um vermelho profundo. Por fim ele sussurra gentilmente:

- Grimgerde...

            Um raio ilumina os céus, como um alerta, seguido por um estrondoso trovão. O homem levanta a cabeça e deixa a água da chuva cair sobre seu rosto. Piscando de um olho, ele observa o céu nebuloso.

- Agora não.

            Ele volta-se para os símbolos reluzentes e sussurra novamente, num tom carinhoso:

- Grimgerde. Sou eu.

            Com o anoitecer se aproximando, a já precária iluminação vai cedendo lugar às sombras noturnas. Mesmo assim, o homem não se levanta e desta vez fala com firmeza na voz:

- Grimgerde, eu vim de longe e mereço a sua atenção. Eu EXIJO que me responda.

            Um uivo aterrador corta a paisagem sinistra, vindo de todo lugar e de lugar nenhum. O homem permanece agachado, com os olhos fixos nas runas desenhadas no chão.

            Súbito, as runas se revolvem, e do seio da terra, uma mão pálida emerge em busca de algo. O homem agarra a mão pelo pulso e se ergue, trazendo consigo o corpo da mulher sepultada.  O corpo, cadavérico e pálido, revestido de uma aura amarelada, oferece pouca resistência e o homem consegue ergue-lo sem esforço algum.

            O homem de sobretudo ergue o braço acima de sua cabeça, colocando a cabeça do cadáver no mesmo nível que a sua. Os olhos do cadáver não passam de uma imagem borrada sobreposta às órbitas vazias e negras do esqueleto, mesmo assim encaram o homem.

- C-como ousa... – geme a aparição.

- Como eu ouso? Esquece quem eu sou? Eu ouso tudo, minha cara Grimgerde.

- M-me deixe... descansar... – pede a alma aprisionada.

- Com certeza, mas antes temos negócios a tratar.

            O cadáver balança num esforço inútil para se livrar do homem.

- Tsc, tsc... Seu estado é deplorável, Grimgerde...

- M-malditoooo...

- Meça suas palavras, saco de vermes. Vamos ao que me interessa: onde está?

            Grimgerde revira os olhos vazios, como se buscasse evitar os olhos negros e penetrantes do homem.

- ONDE ESTÁ? – grita o homem, pela primeira vez demonstrando sua impaciência.

            O silêncio do espírito capturado irrita-o mais ainda.

- Pelas runas eu te invoquei, Grimgerde. Você não pode se recusar a me responder. Sabe disso...

- E-ela se foi... – responde o espírito, sem alternativa.

- Se foi para onde? – insiste o homem.

- Para... São Francisco... já fazem anos...

- Você não fez um bom trabalho, não é mesmo? Não cuidou dela como deveria.

- E-eu...

- Ela foi colocada sob seus cuidados, e mesmo assim, você a deixou ir... Grimgerde, você é uma inútil.

- L-liberte-meeee...

- Claro que vou liberta-la. Mas ficar sob meu domínio seria bem melhor do que apodrecer numa carcaça humana. Tsc... Já que você aceitou esse encargo, fique com ele...

            Num gesto rápido, o homem arremessa o esqueleto de volta à sepultura, fazendo-o chocar-se contra o solo. O corpo bate com violência, sendo abandonado pela aura amarelada. Por fim, resta apenas um cadáver decomposto sobre o solo.

            O homem limpa as mãos no sobretudo e olha para o céu. A chuva cessara quase completamente.

- Bastardos.

            Calmamente, ele começa a caminhar de volta à saída do cemitério e sorri.

- São Francisco não é tão longe...

2 comentários:

Norberto Silva disse...

Esse começo ficou sensacional!!!
Mal posso esperar prá ler mais cpaítulos!!!

Nery disse...

Valeu, João.

Abraço.

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