terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Toque da Entropia


Olá.

O conto a seguir foi originalmente publicado no forum do Universo Nova Frequencia como parte de uma mini-série chamada Desejos Negros, onde cada autor escreveu um capítulo próprio.

A sinopse da mini-série era a seguinte: Um cara misterioso, chamado Melkart, passeia pelo mundo procurando pessoas de caráter duvidoso para realizarem um trabalho com consequências nefastas para o mundo todo. Em troca ele oferece a realização de um desejo.

Neste capítulo, ele encontra o meu personagem. O conto pode ser entendido por si mesmo, sem a necessidade de leitura dos demais. Se alguém se interessar eu posto o link da série completa aqui.

Abraço e boa leitura.



O Toque da Entropia
Por Alex Nery


- Quer saber como tudo começou? – pergunta o homem barbudo sentado na cadeira de madeira.

- Na verdade, eu já sei. Mas quero ouvir com suas palavras. – responde o visitante recostando-se em sua própria cadeira.

- Humpf... se é assim...

    “Eu me lembro do verde. Verde abundante, em todos os tons possíveis de se imaginar. Nos cercando, nos cobrindo, nos sufocando num calor insuportável. Assim era a mata quando nela adentramos. Quatro semanas de caminhada depois, estávamos exaustos. Nossas camisas empapadas de suor, nossas roupas sujas... mas nada isso importava. O que importava era seguir o comandante.
    Joaquim de Araújo era um homem forte. De cinqüenta e poucos anos, ainda liderava expedições como a nossa, com o objetivo de abrir rotas pela mata e capturar os nativos, que estavam sendo vendidos a bom preço em São Paulo. A coroa agradecia o nosso esforço... e os nossos bolsos nunca ficavam vazios. Somente o ouro poderia nos impulsionar neste inferno verde.
    Quando encontrávamos os selvagens, o verde era substituído por outra cor: o vermelho. O vermelho do sangue desses animais, que insistiam em lutar para permanecer em suas aldeias imundas, vivendo nus, sem lei nem ordem, sem nem ao menos o temor da cruz.
    E como lutavam os animais! Chegaram a matar dois dos nossos com suas lanças e feriram mais dois com suas flechas certeiras. Mas neste dia, fizemos a vontade do Senhor e conseguimos apresar trinta deles para levá-los à civilização, onde teriam a oportunidade de converter-se em cristãos e trabalhar a serviço de algum nobre, como era seu destino. Infelizmente, duas dúzias deles morreram na luta, fazendo nosso comandante lamentar o prejuízo. E as mulheres fugiram mata adentro. Nem esse divertimento pudemos ter naquele dia.
    Meu nome é Antonio Silveira. Na época eu tinha apenas dezesseis anos e era a primeira vez que participava de uma das expedições de apresamento dos selvagens. Mesmo com a minha inexperiência tive orgulho em degolar um dos animais quando o encontrei escondido atrás de uma árvore. Era um velho. Não teria valor algum no mercado.
    Após reunirmos a renda do dia e nos certificarmos de que estavam bem amarrados, nosso comandante decidiu retornar à Missão de Santa Maria, por onde passamos dois dias atrás. Lá seria um bom lugar para manter o grupo de escravos, até nossa volta à capital, uma vez que o Padre Lázaro era associado de Joaquim de Araújo.”

- Muito cristão de sua parte – ironiza o visitante.

- Naquela época, tínhamos outras idéias. Afinal, era 1590. Posso continuar?

- Deve.

- Pois bem...

    “Nem tudo ocorreu como planejava nosso capitão. Caminhamos até o anoitecer, quando resolvemos pernoitar numa clareira próxima a um riacho. Reunimos os selvagens num local e os amarramos uns aos outros, e também às arvores mais próximas. Estabelecemos a rotina de vigia e aqueles dispensados do primeiro turno se recolheram para dormir.
    Eu estava de prontidão quando aconteceu (para minha desgraça). Primeiro, um clarão e o céu se encheu de uma luz azulada. A noite tornou-se praticamente dia, empalidecendo a nossa fogueira. O estrondo que se seguiu foi aterrorizante. Muitos de nós caíram de joelhos pedindo perdão por seus pecados, acreditando tratar-se do fim do mundo. Outros embrenharam-se na mata gritando como loucos. Os selvagens, impossibilitados de fugir, gritaram assustados e diziam coisas que ninguém compreendia.
    De onde estava, pude perceber que havia fogo e fumaça num ponto não muito distante na mata. Naquela época, como já disse, eu era um jovem ignorante e sedento por aventuras e riquezas. Não hesitei. Corri para o local onde o fogo se pronunciava.
    Cheguei no local em quinze minutos. Fui o primeiro a chegar. O cenário era de desastre. Árvores caídas e queimadas como se uma mão invisível houvesse passado furiosamente por ali. Eu acreditava que Deus finalmente havia decidido queimar aquele pedaço do inferno na terra.
    Aproximei-me cautelosamente. No final do rastro de destruição havia uma cratera com cerca de vinte metros de diâmetro. Um buraco negro, de terra queimada. O calor era grande, mas suportável. Foi quando finalmente vi.
    Dentro da cratera havia uma redoma. Uma coisa que lembrava uma colher. Uma redoma com dois metros de comprimento e igual altura e uma cauda de três metros, que ia afinando a partir da redoma. Era vermelha, mas conforme o calor diminuía, sua cor se tornava azul.
    Com o cano de minha espingarda, cutuquei a redoma. Ela se desfez como água, abrindo sua parte superior.
    E dentro havia um demônio.”

- Um demônio? Que pitoresco... – zomba o visitante.
- Naquela época, era a única coisa que eu podia pensar. Hoje, eu sei que o demônio tem outras formas. Como a sua, senhor Melkart. – diz o homem barbudo com raiva.
- Demônio? Sim, sim... já fui chamado assim. Mas continue, Silveira...
- Como eu dizia...

    “O demônio era pequeno. Devia ter uns cinqüenta centímetros de altura. Sua cabeça era desproporcional ao corpo. Tinha dois orifícios na parte superior da cabeça, que deveriam ser seus olhos, e dois orifícios laterais. Não vi nariz algum e o que parecia uma boca era protuberante e se destacava na cabeça redonda. Seu corpo era esguio, braços longos e tentaculares, duas pernas curtas... Algo horrível. Ao me aproximar para observar melhor, a coisa abriu os olhos graúdos e fixou-os em mim. Meu primeiro pensamento foi atirar naquela coisa. E foi o que fiz. Engatilhei a espingarda e acertei em cheio um tiro na cabeça daquele demônio, espalhando seus miolos por toda parte.
    Com o coração palpitando eu queria sair dali o mais rápido possível, mas foi quando vi o tubo com as luzes de várias cores, bem ao lado do monstro. Eram cores maravilhosas e me atraíram como uma borboleta. Hipnotizado, toquei no tubo e da mesma forma que a redoma, ele se desfez.
    Olhei maravilhado aquelas luzes saírem flutuando do tubo. Elas giraram ao meu redor e antes que eu me desse conta, elas investiram contra mim e entraram em meu corpo, sem abrir um buraco sequer. Apenas transpassaram minha pele e eu pude senti-las percorrendo meu corpo. Imagens loucas, de lugares estranhos, mundos perdidos, sóis e luas distantes invadiram minha mente. Na época, achei que estava vendo uma paisagem do inferno.”

- Você parece ter fixação no inferno, Silveira. Ou estou enganado? – o visitante sorri.
- Céu ou inferno... tenha o nome que tiver, não acredito que exista. Não mais. – Silveira se remexe na cadeira. Em seus olhos, um ódio profundo parece flutuar.
- Ah, meu pobre amigo... Será que 432 anos de vida não lhe ensinaram nada?
- Ensinaram que eu não consigo morrer. Por mais que tente, e acredite, eu já tentei tudo o que se possa imaginar, eu continuo aqui. Aquela experiência me tornou imortal... E me amaldiçoou.
- Ah, sim. Sua condição é interessante... Um imortal que não pode tocar em ninguém.
- Maldito demônio zombeteiro...
- Não, não, Silveira. Posso ser um demônio (quem sabe?), mas estou aqui para ajudá-lo.
- Me ajudar? Como?
- Eu venho lhe observando desde muito tempo. Sei que seu encontro com forças de outro mundo lhe deu a imortalidade, mas também lhe deu o toque da morte.

    Silveira olha para as próprias mãos enfaixadas e enluvadas.

- Você não pode tocar em nenhum ser vivo sem que o mate. E isso já lhe custou muito, não? Sua família, seus amigos... – os olhos do visitante parecem duas brasas incandescentes.
- Sim, sim, SIM!!! Maldito. Sabe de tudo isso e veio me atormentar? Faz vinte anos que me recolhi nesta cabana, afastado de tudo e de todos para tentar existir em paz... Me deixe! Suma daqui!
- Dificilmente você gostaria que eu sumisse. Eu tenho poder para lhe dar seu maior desejo.
- Meu maior desejo é a morte!
- Pois posso concedê-la a você.
- Mentiroso. O demônio sempre mente...
- Esqueça suas aulas de catecismo. Já fazem pelo menos três séculos que você não se considera cristão, ou de qualquer outra religião...
- Diga o que quer ou vá embora!
- Ah, curioso agora? Pois bem. Eu posso lhe conceder a morte. Mas você deve me convencer que realmente merece meu presente.
- Como? Eu já tive que matar nesta vida... às vezes por defesa, outras por pura loucura... Tenho muitos pecados!
- Não foi o suficiente. Me agrade e a morte lhe receberá. Eu garanto.
- Você é a morte?
- Não. Mas posso lhe levar até ela.
- Então faça AGORA! EU IMPLORO!
- Faça por merecer. Além disso, outros buscam pela minha atenção e meus presentes... talvez você não seja o melhor deles. Talvez outro seja mais digno...
- O quê devo fazer?
- Use sua imaginação. Pense em algo...

    Silveira sente sua cabeça ferver. Aquele estranho homem, surgido do nada, batera em sua porta esta manhã e simplesmente sabia tudo a seu respeito. Seus instintos lhe diziam se tratar de um demônio, mas mesmo para quem viveu quatro séculos e viu muita coisa, ele não tinha certeza disso.
    Quatro séculos... o suficiente para ver todas pessoas amadas sucumbirem. O suficiente para conhecer o melhor e o pior dos homens. O suficiente para se cansar da maldição de não poder tocar em nenhum ser vivo.
    Súbito, a decisão está tomada. Silveira levanta-se e diz:

- Me espere aqui. Quando eu voltar, a morte me aceitará.

    Melkart, o visitante, assente com a cabeça. Seu sorriso impenetrável continua a incomodar Silveira.
    Silveira apanha um casaco e sai pela porta da pequena cabana.


    Quatro horas se passam. Melkart observa impassível pela janela da cabana de Silveira. Em sua face, nenhum sentimento é demonstrado, e suas intenções são insondáveis.
    Finalmente a porta da cabana se abre e um amaldiçoado Silveira entra e se joga sentado no chão. Seus olhos refletem o mais puro horror.

- E-está feito... – murmura Silveira.
- Sim, eu senti o impacto de seus atos – responde Melkart.
- Sentiu? Então sabe o que eu fiz? – Silveira não consegue tirar os olhos do chão. É impossível encarar Melkart.
- Sim. Achei que foi um grande esforço de sua parte.
- GRANDE ESFORÇO??? – Silveira levanta-se e avança agarrando Melkart pelo colarinho - É TUDO O QUE TEM PARA ME DIZER?
- Ora, - Melkart encara Silveira nos olhos – deseja que eu lhe dê parabéns por ter chacinado toda a população da vila mais próxima? Parabéns por ter matado homens, mulheres e crianças, sem discriminação, sem hesitação? Você matou quase duzentas pessoas, apenas lhes tocando... acha que é um grande feito?
- Agora tenho certeza... Você É o demônio! Meu Deus... vejo o rosto de cada um daqueles que toquei. E-eu matei... crianças inocentes! Bebês até!
- Cada um tem seu demônio, Silveira. Talvez eu seja o seu. Mas sou um homem de palavra.
- Vai me dar a morte?
- Sim, claro.
- ENTÃO FAÇA LOGO! EU QUERO MORRER AGORA!
- Receba esta marca – dizendo isto, Melkart toca no braço direito de Silveira. O imortal sente a dor de uma queimadura e quando o visitante retira a mão, Silveira percebe uma tatuagem em forma de serpente no seu braço.
- Minha pele vai regenar. Essa marca vai sumir. – diz o imortal.
- Não. Ela está gravada na sua alma. Você agora terá o prêmio que tanto pediu. Mas deve me encontrar num lugar apropriado.
- Você prometeu me matar! Eu exijo...
- Claro. Mas isso não pode ser feito em qualquer lugar. Eu lhe mandarei instruções sobre como chegar em um local de poder, onde poderei libertar você do peso da imortalidade. Acalme-se, homem imortal... você terá seu descanso.
- SIM! SIM! É o que eu quero!
- Aguarde minhas instruções. Em breve nos reencontraremos.

    Um vento frio escancara a porta da cabana e Silveira volta-se para fechá-la. Ao olhar de volta, o misterioso visitante Melkart desaparecera.

- Era o demônio. Eu tenho certeza. Pois que seja... Pois que eu vá para o inferno. Chega desta existência! Chega deste mundo! Eu irei ao seu encontro Melkart, e por bem ou por mal, você me libertará desta existência.

FIM

sábado, 16 de julho de 2011

Os Zumbis e os Coloridos


Olá, pessoal.

Meses atrás, os amigos do Universo Nova Frequência e eu criamos o ebook Frequência Z, contando a história do apocalipse zumbi ocorrido em uma fictícia cidade do interior do Brasil.

O ebook é formado por oito contos, indo do terror à comédia, com todas as tramas acontecendo na mesma cidade. Tem de tudo, de idosos psicóticos a músicos coloridos fugindo dos mortos-vivos.


Resolvi disponibilizar aqui o meu conto desta coletânea como amostra dos textos que você encontra lá. É justamente o que mostra a luta desesperada dos coloridos e sensíveis (ui) músicos da Banda Delete tentando escapar da fúria dos zumbis alucinados. No final do conto eu coloquei o link para download do ebook completo. Divirta-se!

Obs: As ilustrações deste post são de Anderson Oliveira, e o ebook possui muitas outras, incluindo desenhos de João Norberto também.


OS ZUMBIS E OS COLORIDOS
Por Alex Nery

Nossa Senhora de Santa Fé.
Noite de Domingo.
Estádio Municipal.
Show da banda Delete.

A multidão estava eufórica. Milhares de pessoas haviam deixado suas casas para assistir à única apresentação da famosa banda Delete no município. Adolescentes coloridos saltitavam mais do que gazelas no cio, enquanto no palco, os quatro músicos adolescentes, líderes do movimento colorido despejavam suas canções, todas no top 10 das rádios pop do país.
Na bateria, Zé Lucas, vinte e um anos, moreno e musculoso. Possuidor de um sorriso de galã de Malhação. À direita do palco, na guitarra, Pru, o músico de dezesseis anos, xodó da ala fúcsia do fã clube.
À esquerda, Fucho, o colorido mais “fofinho” do grupo. Daí vinha seu apelido, derivado de “fofucho”, como diziam as fãs. À frente, arrancando gritinhos de todo tipo de criatura saltitante presente, estava Pi Tomba, o vocalista e líder da banda.
Na plateia, as pessoas estavam alvoroçadas. Várias faixas de fã clubes podiam ser vistas:

“A FAMÍLIA MACHINE AMA VOCÊS!”
“QUERO CONHECER VOCÊS PESSOALMENTE. ASSINADO: CHÉDOU”

    Um dos momentos altos do show foi quando o DJ da rádio local sorteou uma fã para subir ao palco e conhecer os ídolos.
- Vamos lá, pessoal! Aqui está o nome da sortuda, ou do sortudo... vejamos....
As fãs prenderam a respiração enquanto o DJ fazia suspense.
- É uma sortuda! O nome dela é... VAMPYYYYY!!!!
Depois de alguns instantes, a fã sortuda subiu ao palco. Ela chorava e pulava emocionada ao encontrar seus ídolos.
- Eu quero mandar um beijo pro meu namorado, Frê! – disse ela.
A banda atacou com o hit que estava estourado em todas as rádios: “Vem, Jorge”, que Pi Tomba, o vocalista e baixista da banda, havia composto em homenagem ao seu gato, um gato balinês que ele tinha desde os oito anos de idade, chamado “Jorge”, e que havia morrido atropelado pelo sorveteiro do bairro cinco anos depois.
Assim como Pi, várias fãs debulharam-se em lágrimas, emocionadas com a homenagem.
***
Nossa Senhora de Santa Fé.
Tarde de Segunda-Feira.
Saguão do Hotel “Rogério Cormão”, 13:29 h.
Os quatro músicos aguardavam entediados pela van que os levaria ao aeroporto.

- O Silvio é um filhodaputa... – resmungou Pi.
- De marca maior... – concordou Zé Lucas.
- Quê isso, galera... Por que essa chateação? – perguntou Pru.
- Porra... – praguejou Fucho – Primeiro ele manda a gente pra esse fim de mundo, fazer show num estádio menor que o meu quarto... e depois deixa a gente mofando aqui.
- Ah, ele disse que tinha um encontro com o George Doriana, o dono da gravadora – explicou Pru.
- Tomara que ele saia de lá com mais dois CDs fechados... – rangeu Pi.
- Aqui não é tão ruim... Viram a loucura de ontem? Aqui somos deuses!
- Pru... já te disse... aquele segurança não tava olhando pra ti...
- Estraga prazer...
Algumas pessoas entravam e saiam agitadas do hotel. De início isso não atraiu a atenção dos coloridos, mas logo eles perceberam uma agitação incomum em uma das entradas.
- Ih, lá vem essas doidas histéricas fazendo barraco... – disse Pru, olhando para a entrada do hotel, onde os dois seguranças tentavam impedir a entrada de um grupo de pessoas.
- Será que o Justino Biba passa por isso? – perguntou Fucho.
- Claro que não... ele tem um empresário melhor que arruma seguranças e hotéis melhores... – disse Pi.
Um dos seguranças caiu para trás. O grupo que tentava invadir o hotel avançou sobre ele.
- Cruzes! Olha aquilo!
- Parece que tão...
- Tão...
- Tão mordendo o cara?
O grupo de pessoas amontoava-se sobre o segurança, mordendo-o em seus braços, pernas e rosto. Pareciam cães famintos. Mordiam e sacudiam a cabeça procurando arrancar um pedaço de carne. O outro segurança tentou tirar as pessoas de cima de seu colega, mas logo foi abocanhado no pescoço por um dos invasores. Os quatro observavam atônitos a cena, enquanto as outras pessoas corriam apavoradas. Logo perceberam que uma dos atacantes possuía o corpo seco e semidevorado.
- Putaquepariu...
- Que porra é essa, véio?
- É... É...
- Uma fã subnutrida?
A criatura rosnou, exibindo seus dentes amarelos e começou a se arrastar em direção aos músicos.
- Glup!
- Fã subnutrida é o caralho!
- É... É...
- ... UMA ZUMBI!
Os quatro abriam as portas do hotel e saíram correndo apavorados. Pi e Pru corriam na frente, sendo seguidos por Zé Lucas e Fucho. Eles correram cegamente, sem a menor noção de para onde estavam indo.
Somente quando pararam no meio da rua, olharam em volta. Dezenas de zumbis arrastavam-se pela área. Alguns dando cabeçadas nos postes, tropeçando nos próprios pés ou avançando a esmo.
- Mas que putaquepariu é essa? – gritou Pi.
Imediatamente os zumbis perceberam a presença do grupo.
- Ai, caralho... por que tu não fica calado? – resmungou Zé Lucas tremendo.
- É, porra! Deu a maior bandeira... agora esses podres vão vir pra cima da gente! – murmurou Pru.
- Bandeira dá essa tua cueca laranja. Dá pra ver isso a quilômetros! – disse Pi.
Os zumbis começaram a se arrastar em direção à banda. Alguns deles caiam e não conseguiam mais se levantar. Mesmo assim, se esforçavam para rastejar em direção aos músicos.
- CORRE CAMBADA! – gritou Fucho, saindo em disparada pela área que possuía menos zumbis.
Seus amigos não hesitaram e correram atrás do guitarrista. Com pouco passos ultrapassaram Fucho e continuaram correndo.
- Ei! Ei! Pô... Peraí... arf... assim não pô...
Os quatro embrenharam-se num beco próximo. A ânsia de escapar era tanta que eles corriam alucinadamente e sem pensar.
Logo os integrantes da banda chegaram até uma cerca de madeira que media mais ou menos dois metros e meio, fechando o beco. Fucho arfava loucamente tentando puxar o oxigênio.
- Fudeu – disse Zé Luís.
- Quem teve a ideia de vir pra cá?- perguntou Pru.
- A tua mãe, claro. Não viu ela acenando pra gente? – disse Pi.
- Arf... Arf...
- E agora, Pi?
- Bora pular, claro.
- Bora. Zé, me levanta aí!
- Vai te fuder, Pru. Tá pensando o quê?
- Arf... Arf...
- Deixa de ser burro. Tu é único com força de levantar a gente.
- E quem me levanta?
- Ahn... O Fucho?
- O FUCHO? Putaquepariu, o Fucho não aguenta levantar nem o próprio corpo...

     Grunhidos começaram a serem ouvidos vindo da entrada do beco. Os quatro se arrepiaram.
- Bora! Bora! – Pi saltitava nervoso.
- A gente tem que empurrar o Fucho primeiro – disse Pru.
- O quê? – espantou-se Zé Lucas.
- Tá doido, Pru? Comeu cocô?
- Bora! Bora!
- Arf... Arf...
- Olha aí o coitado... não vai conseguir pular isso nem com reza braba... – murmurou Pru olhando o obeso amigo arfante.
- Vem cá, Pru... – chamou Zé Lucas.
- Hm?
- Responde uma coisa...
- O quê?
- Tu tá pegando o Fucho?
- M-mas... Que filhodaputa!
- Já manjei... Fica nervoso não...
- As senhoras querem trocar confidências mais tarde? Agora a gente ta prestes a ser comido! – disse Pi, pálido e saltitante.
Os grunhidos seguiam agora do irritante ruído de pés arrastando, numa marcha lenta e inexorável. Pelo murmúrio das vozes, eles calcularam que pelo menos vinte zumbis estavam se aproximando.
- Já sei! Fucho, entra nessa caçamba de lixo e fica quieto. A gente pula, eles não veem nada e a gente volta pra te pegar – elaborou Pi.
- Na caçamba? Tá doido? Vocês pulam e eu fico aqui com essas coisas? – protestou Fucho.
- Tu consegue pular? Não, né, pesadão? – disse Zé Lucas.
- Te falei que a gordura ainda ia te matar... – disse Pru.
- Grande conselho pra uma hora dessas, valeu mesmo... Tu é meu irmão... Meu chapa... Meu...
- Cala a boca e entra nessa porra! – ordenaram os três à Fucho.
Os três levantaram Fucho desajeitadamente, segurando-o pelas pernas e bunda. Num impulso, empurraram o guitarrista caçamba adentro. Fucho caiu pesadamente sobre a montanha de papéis, restos de comida e sacos plásticos com sabe Deus o quê. Afundou as mãos numa coisa pastosa e teve medo de olhar o que era.
- Ah, Deus... tomara que isso seja pudim...
- Afunda aí, Fucho. Te esconde! – disse Pru.
Fucho estava quase chorando quando afundou a cara no lixo. Com as mãos arremessava sacolas e entulho sobre sim mesmo, buscando cobrir-se com o que tinha à mão.
Os outros três integrantes do Delete correram e saltaram a cerca rapidamente. Caíram bruscamente do outro lado. Deram sorte. Era o jardim de uma residência e estava vazio.
- Quietos agora... – disse Pi, sinalizando com a mão.
Em silêncio, os três agacharam-se e encostaram-se na cerca. Pru encontrou uma brecha entre as grossas tábuas e ficou observando a cena.
Os zumbis aproximavam-se lentamente. Eram cerca de quinze deles. Pru visualizou bem os primeiros. Um deles eram um homem idoso, vestido com um paletó surrado e manchado de sangue. Ele não possuía maxilar e arrastava a perna esquerda sem pé. Atrás dele vinha uma mulher jovem, loura, vestida como uma executiva. Havia sangue em seu cabelo e rosto, escorrendo sobre o blazer azul. Seus olhos eram brancos e revirados para trás. Logo em seguida, o grupo de mortos-vivos era composto por uma variedade de tipos, desde um asiático vestido como sushiman até um garoto de aproximadamente onze anos, ainda carregando a lancheira escolar, de onde apareciam os dedos de uma mão, guardada como se guarda um lanche. Os zumbis avançavam lentamente em direção ao fundo do beco, sem a menor noção de que havia uma cerca ali. Fucho tremia feito vara verde dentro da caçamba de lixo e rezava para não ser visto.
Um zumbi moreno e forte trombou com a caçamba de lixo. Parou, tentou seguir e trombou mais duas vezes. Então tateou a borda da caçamba e fez força para subir. Ergueu metade do corpo. E então caiu para dentro da caçamba. Pi, Zé Lucas e Pru prenderam a respiração.
Dentro da caçamba, o zumbi caíra exatamente sobre Fucho. O membro mais “fofinho” da Delete cerrou os dentes para conter um grito. Sentiu o zumbi movimentar-se desajeitadamente sobre ele, tentando levantar-se. O zumbi colocou-se de joelhos sobre as costas de Fucho e tentou um impulso para levantar-se. Não teve forças. Voltou a cair sentado sobre o guitarrista.
Fucho não resistiu e soltou um gritinho abafado. O zumbi olhou em volta aturdido. Apoiou as mãos no lixo para equilibrar-se e percebeu a carne macia abaixo de si. Cutucou com o dedo indicador a bunda de Fucho, como quem analisa uma fruta no mercado.
- HUAAAAAAAA!!! – gritou Fucho dando um salto.
O lixo voou pra todos os lados. O zumbi foi empurrado para um canto da caçamba.

- SOCORROOOOO!!! – berrou Fucho.
Os demais zumbis voltaram sua atenção para a caçamba e ergueram suas mãos esqueléticas e semidevoradas para agarrar Fucho. O guitarrista dava chutes tentando afastar as bocas famintas. Os amigos de Fucho ficaram estarrecidos.

- FUDEU! FUDEU! – gritava Pi.
- Caracas, esses zumbis parecem as nossas fãs... – murmurou Zé Lucas.
- FUCHOOOOO!!!! – gritou Pru.
Fucho chutava violentamente os zumbis.
Até que sentiu uma mordida na bunda.
- HHHHUUUUUUAAAAAAAAAA!!!!
O zumbi que estava na caçamba havia aproveitado a distração de Fucho e o mordera, rasgando um naco de carne bem grande da bunda do colorido guitarrista.
Com a dor, Fucho hesitou. Os zumbis conseguiram agarrar as pernas do jovem e puxá-lo para fora da caçamba. Mal ele caiu no chão, já estava tendo seus braços, pernas e peito rasgados pelos dentes dos zumbis. Fucho gritava enlouquecido. Seus amigos assistiam impotentes àquela cena de pesadelo. Uma “montanha” de zumbis se formara para devorar Fucho.
- Fucho...
- Caralho...
- Buááááá...
Assistiram a morte do amigo por cerca de um minuto antes de saírem do transe.

- P-pessoal...
- Quié, Pi?...chuinf... – Pru soluçava.
- Bora sair daqui. Logo essas coisas acham a gente e aí a gente se fode igual ao Fucho – disse Pi.
- Nenhum zumbi vai me comer não! – protestou Zè Lucas – Eu dou porrada neles!
- Hm, se já passou o momento “macho-man”, bora pensar pra onde podemos ir, ok?
- Do avião deu pra ver uma ponte grande que levava pra fora da cidade... – lembrou Pru.
- E por quê a gente não pega um avião logo? – perguntou Zé Lucas.
- Tu sabe pilotar?
- Ahn...
- Pois é, idiota.
- A gente devia pegar um carro.
- Boa ideia, Pru.
- Mas olha essa fumaceira desgraçada... a cidade deve estar em chamas! – disse Zé Lucas olhando para as colunas de fumaça negra que subiam aos céus de vários pontos da cidade.
- Calma. Primeiro a gente acha um carro, depois foge pela ponte.
Os três começaram a caminhar pelo jardim, se afastando da cerca. Todos tremiam e estavam muito abalados pelos zumbis terem lanchado o Fucho. Andavam pé ante pé cruzando o jardim. Não viram nenhum zumbi no local. Passaram em frente à porta dos fundos da casa e se dirigiram para a saída lateral, foi quando ouviram um grunhido.
- Gruuunnnhh...
Pararam congelados.
- Aimeudeus... – gemeu Pru.
- É zumbi! É zumbi! – disse Pi rangendo os dentes.
- Ahn... são as minhas tripas... tô com dor de barriga... – explicou Zé Lucas.
Pi deu um tapão na cabeça de Zé Lucas. Continuaram a caminhada e dobraram a lateral da casa. Cautelosamente correram até o portão que os separava da rua e observaram o movimento. Não notaram nenhum morto-vivo nas proximidades. Saíram para a rua e puderam ver alguns zumbis se arrastando no fim quarteirão seguinte.
- Por ali não dá pra ir – disse Pru.
- Olha lá! Um cyber café! – notou Pi.
- E isso é hora de querer entrar no Orkut?
- Que Orkut coisa nenhuma, idiota! A gente pode pedir socorro pelo telefone ou pela net! – disse o vocalista.
- A gente pode chamar a polícia! O exército! Os fuzileiros navais!! – disse Pru, imaginando um resgate heroico.
- Aff...
Os três entraram bem devagar no cyber. Alguns computadores estavam ligados e seus monitores emitiam um brilho monótono. À primeira vista não havia ninguém ali. Apressaram o passo e trancaram a porta atrás de si.
- Bora colocar alguma coisa aqui pra fechar essa porta – disse Pi.
- Vamos empurrar a banca dos pcs e escorar aqui... – imaginou Zé Lucas.
- Se botarem a mão em qualquer coisa, eu estouro a cabeça de vocês! – disse uma voz enérgica vindo dos fundos da lan.
Com as canelas batendo os três músicos encararam o dono da voz.
Apontando um rifle de caça diretamente para eles estava um homem gordo e suado, com expressão paranoica.
- Ai, jizuis... – murmurou Pru.
- Eu quero a minha mãe... – disse Pi.
- Gruuunnnhh... – disseram as tripas de Zé Lucas.
O homem apontava a arma e sorria maliciosamente.
- Se-senhor... precisamos de a-ajuda... – disse Pi tentando controlar o medo.
- Ajuda, é?- repetiu o homem armado.
- É-é... a gente... pode usar seu telefone? – pediu Pru.
- Meu telefone, é?
- E o seu banheiro... Unf... se não for incômodo... – pediu Zé Lucas segurando a barriga.
- É, telefone... Pra chamar a polícia... tá cheio de zumbi lá fora! – disse Pi.
- Não podem usar PORRA NENHUMA! – gritou o homem.
- M-mas...
- O mundo SE FUDEU! Eu finalmente não tenho que aturar tipos como vocês! – disse o homem engatilhando a arma.
Os três músicos coloridos recuaram até a porta. O homem avançou.
- Anos... ANOS... aturando idiotas como vocês! Moleques com esses cabelos estranhos, essas roupas com cores horríveis, analfabetos, imbecis... Agora posso mandar todos PRO INFERNO! BWAHAHAHHAHAHA... – o homem apontou a arma para os músicos.
- ELE TÁ LOUCO!
- CORRE POVO!!
- GRUUUNNNHHH...
Os membros da Delete passaram pela porta correndo como uma revoada de borboletas descontroladas. Atrás deles um tiro ecoou por sobre suas cabeças e estraçalhou o luminoso do cyber. O homem saiu também pela porta e começou a fazer nova mira nos coloridos, o que não era muito difícil devido às cores berrantes que usavam. Atraídos pelo som do disparo, alguns zumbis começaram a se aproximar do cyber. O homem voltou sua atenção para eles e começou a atirar.
- Venham, seus idiotas! VENHAM! BWAHAHAHAHAHHAHAHAHAH...
Os coloridos continuaram correndo até não poderem mais ouvir a risada maníaca do homem da lan. Dobraram a primeira esquina que encontraram.
Ofegantes, pararam de correr no meio da rua.
- Arf... arf...
- O-olhem... estamos SALVOS! – disse Pru.
Zé Lucas e Pi levantaram as cabeças e olharam na direção em que o amigo apontava. Ali estava a delegacia de Santa Fé.
- Sabem o que isso significa? Armas! – disse Pi com um brilho estranho no olhar.
- E você vai poder ir ao banheiro, Zé!
- Agora não preciso mais...
Logo o mau cheiro invadiu as narinas de todos.
- Zé... tu é nojento... – disse Pi tapando o nariz.
- Porra, mó vacilo... – reclamou Pru.
- Ah é? Vacilo é? Tenta fugir com dor de barriga de um maníaco armado! Tenta, vai!
Um murmúrio chamou a atenção dos três desesperados. O murmúrio já conhecido dos zumbis se arrastando em direção a eles.
- Pra delegacia, galera! – gritou Pi.
Entraram correndo no prédio, esquecendo momentaneamente que poderiam haver zumbis lá dentro. A delegacia estava bem iluminada, mas parecia que havia acontecido uma rebelião ali, pois todos os móveis estavam revirados e haviam muitos papéis jogados a esmo.
- Cadê os cana? – perguntou Pru.
- Porra, nem no dia do juízo final a polícia trabalha? – reclamou Zé Lucas.
- Devem ter corrido quando sentiram esse teu cheiro de flores do campo... – resmungou Pi abanando a mão em frente ao nariz.
- De qualquer jeito, tenho que achar o vestiário dos caras. Pode ser que haja alguma roupa lá que eu possa usar – disse Zé Lucas olhando em volta.
- Deve ser por aquele corredor... – disse Pru apontando por um corredor nos fundos do salão da recepção.
- Bora dar uma olhada por aí... quero pôr as mãos numa arma... – decidiu Pi.
Os três entraram por um corredor amplo até chegarem a uma porta gradeada. A porta estava destrancada e eles resolveram entrar. Chegaram num pátio interno da delegacia. De repente ouviram vozes:
- Abre aqui!
- Socorro!
- Aqui! Aqui!
Entreolharam-se assustados.
- Não podem ser zumbis... zumbis não falam, só gemem e grunhem – disse Pi.
- Vem dali daquele corredor – apontou Zé Lucas.
- Devem ser... os presos! A polícia deve ter caído fora e largaram os caras aqui! – concluiu Pru.
- Pode ser. Eles podem dar a dica de onde estão as armas, né? – disse Pi.
- Tá doido? Quer ir lá com esse povo? É gente baixa, rude e violenta! – reclamou Zé Lucas.
- Esquece essa gentalha. Bora procurar nós mesmos as armas! – disse Pru.
- É, pensando bem, que se fodam esses marginais... – concordou Pi.[1]

     Vasculharam as salas ignorando os pedidos de socorro. Zé Lucas correu para o banheiro e logo após rapidamente encontraram o vestiário dos policiais, onde o colorido achou um macacão da divisão anti-tumulto do seu tamanho.
- Ah, agora sim... limpinho... – suspirou Zé Lucas.
- Tá uma merda – disse Pru.
- Hein? Onde? Mas eu me limpei! – protestou o baterista.
- Não. Tá uma merda essa cor cinza aí... sem graça... – disse Pru com expressão de desagrado.
- É... não tem outro, tipo... verde fosforescente? – sugeriu Pi.
- Já mandei vocês tomarem no...
O som de tiros ecoou pela delegacia. Os três estremeceram apavorados.
- AHHHH!!- gritou Pru histericamente.
- Bora pegar umas armas! – gritou Pi.
- Onde? Onde?
Os músicos entraram correndo na última sala que faltava ser vasculhada, justamente a sala de armas. Encontraram alguns rifles pendurados em ganchos na parede, mas protegidos por uma grade bem resistente, com um cadeado mais forte ainda.
- A gente não devia ter levantado da cama hoje... – resmungou Zé Lucas.
- A gente devia ter ido embora dessa cidadezinha ontem mesmo... – disse Pi, rangendo os dentes.
- A gente nem devia ter vindo pra cá... – choramingou Pru.
- Não tem jeito da gente pegar essas armas aí. Pela cara dessa grade, a gente vai levar a vida toda tentando – concluiu Pi.
- ...e a nossa vida vai ser bem curta se continuarmos aqui. Bora cair fora!
- Tô contigo, Zé! Bora!
Esgueiraram-se de volta pelos corredores buscando a saída.
Um novo tiro foi ouvido, vindo exatamente da entrada.
- Fudeu! Os presos devem ter escapado e tão se matando na saída!
- Não tem jeito, Pru. A única entrada e saída é por ali!
- Que cadeia escrota...
- A gente sai correndo e foda-se!
- Esse é teu plano?
- Na verdade meu plano é fazer você tropeçar e deixar esses estupradores interioranos se divertirem contigo enquanto eu fujo...
- Fidamãe...
- Que falta faz o Fucho...
- Pois é...
- ... assim ELE poderia tropeçar no meu lugar...
- A gente chora a falta dele depois! BORA CORRER!!!
E assim fizeram. Desembestaram numa correria louca, digna de um campeonato de gazelas. Chegaram até a metade do hall de entrada quando tiveram uma visão que os paralisou.
Um homem moreno, com aproximadamente um metro e noventa de altura, com cerca de cento e trinta quilos, vestindo um macacão sujo de graxa e óleo, segurava uma escopeta e disparava contra alguma coisa do lado de fora. O homem rangia os dentes e tinha seus olhos vermelhos de fúria.

- Uia!
- Quem é?
- Que homem!
Assustado pelas vozes dos coloridos, o homem apontou para eles a arma e por pouco não disparou.
- Quem são vocês, seus filhos da puta?! – berrou histérico.
- NÃO ATIRA PELAMORDEDEUS!! – implorou Pi.
- Somos da banda Delete! – gaguejou Pru.
- Nunca ouvi falar! – disse o homem alternando a mira entre os coloridos e os zumbis do lado de fora.
- Caipira ignorante... – murmurou Zé Lucas.
- O QUÊ?! – o homem atirava freneticamente abatendo os zumbis que se aproximavam.
- Calma! Calma! Nós somos gente! Não zumbis! – disse Pi levantando os braços.
- Tecnicamente zumbis também são gente... a diferença é que estão mortos... – pensou Pru.
Percebendo que os coloridos, apesar de seu aspecto, também eram pessoas vivas, o homem relaxou e preocupou-se em manter os zumbis distantes.

- Certo! Certo! Entendi!
- E quem é você? Polícia? – perguntou Pi.
- Não. Eu sou mecânico. Meu nome é Tião.
- Ajuda a gente, Tião!
- Não consigo ajudar nem eu mesmo! É o fim do mundo!
- Mas você ta armado! A gente tem só nossos... músculos?
Tião olhou para os músicos de cima a baixo.
- É... vocês tão fodidos mesmo...
- Você pode arrombar a grade do depósito de armas! Aí a gente pega umas e sai fora desse inferno! – sugeriu Pi.
- Eu tô com meu guincho ali fora! Vim aqui procurar ajuda da polícia! – disse Tião.
- Chegou tarde! A polícia se mandou e deixou só os marginais lá dentro – disse Zé Lucas.
- Salva a gente, seu Tião! Salva a gente! – implorou Pru.
- Porra! Tá! Os mortos-vivos tão afastados agora. A gente pode correr até o guincho! – disse Tião.
- Ok! Ok!
Os quatro preparam-se. Tião olhou para dos dois lados da rua, certificando-se de que havia um caminho livre. Alguns zumbis se arrastavam até ficarem a cerca de vinte metros do guincho.
- CORRE!!! CORRE!!! – gritou Tião, saindo porta a fora.
Os músicos o seguiram correndo. Pru tropeçou e foi ao chão, batendo a cabeça no asfalto.
- HUNF!!!
Pi e Zé Lucas chegaram ao guincho no momento em que Tião entrava pelo lado do motorista.
- Levanta Pru! – gritou Pi entrando na cabine do caminhão guincho.
O guitarrista tentou levantar-se mas ainda estava muito zonzo. Os zumbis aproximavam-se salivando. Um dos mortos-vivos mais próximos vestia uma camiseta do Capitão América bastante suja de sangue.
Pru ergueu-se sobre os dois braços. Sua cabeça doía e ele havia perdido a noção da direção pra onde devia correr. O “Capitão América” caiu no chão quando uma de suas pernas carcomidas partiu-se abaixo do joelho. Sua cabeça ficou a um metro e meio da perna de Pru. Como se sentisse o cheiro da carne do músico, ele começou a rastejar em direção à vítima. Sua saliva caía no asfalto quente. Seus olhos leitosos reviravam a esmo, dando um aspecto ainda mais grotesco à sua face semidevorada. O zumbi estrelado recebeu um tiro de escopeta na cabeça que espalhou o que restava de seus miolos pela rua. De pé, próximo ao guincho, Tião segurava a arma ainda fumegante.
- CORRE! – gritou o mecânico.
- M-meu herói! – disse Pru, levantando-se.
Tião retornou ao volante do guincho, enquanto Zé Lucas ajudava Pru a subir na cabine.
Mais quatro zumbis uniformizados como militares tropeçaram e caíram sobre o corpo do “capitão”, fazendo um montinho. Tião arrancou com o guincho.
Tião dirigia como um louco. Manobrava por entre os zumbis sem se importar com aqueles que esmagava pelo caminho. Os corpos semidevorados dos mortos-vivos esfacelavam-se contra o para-choque do guincho.
- Pra onde a gente ta indo? – perguntou Zé Lucas.
- Em frente! Em frente! – grunhiu Tião.
- Em frente pra onde? – insistiu Pi.
- Sei lá, porra! Em frente até não ver mais nenhuma dessas coisas! – berrou Tião.
- O cara tá em pânico, Pi – cochicou Pru.
- Aham... Peraí... Ô, seu Tião...
- QUE FOI??
- Não seria melhor a gente ir pra ponte e de lá sair da cidade?
- Ponte? Ah é! A ponte!
Tião deu uma guinada brusca, entrando na rua à esquerda. Era uma rua elevada e de lá eles podiam ter uma boa visão da parte baixa da cidade. Nuvens negras de vários focos de incêndio subiam aos céus. Ao longe puderam ouvir uma explosão. Era um dos postos de gasolina que havia ido pelos ares, arremessando zumbis aos pedaços por todo lado. Em todas as ruas haviam zumbis perambulando. Em algumas delas, verdadeiras multidões de mortos-vivos impediam qualquer tentativa de passagem.
- O caminho direto tá bloqueado! – disse Tião – A gente vai ter que contornar pela orla.
- Sem problemas, chefia – disse Zé Lucas.
Tião acelerou e desceu a rua. Faltando dois quarteirões, o grupo de sobreviventes deu de cara com um tiroteio. As balas voavam de ambos os lados da rua. O guincho foi pego no fogo cruzado, obrigando todos a se abaixarem.

- Que merda é essa?? Zumbi atirando?- berrou Zé Lucas.
Pi levantou um pouco a cabeça e pôde observar que aqueles disparos eram feitos por vivos. Dezenas de homens e mulheres armados abrigavam-se dentro das lojas e casas e abriam fogo contra as pessoas do outro lado da rua.
- O povo endoidou! Tão se matando! – disse o vocalista.
- É o fim do mundo! Eu disse... – resmungou Tião, tentando dirigir sem expor demais a cabeça.
- Para essa porra, Tião! PARA! – berrou Pru.
- O QUÊ? Parar aqui? Tá doido? – contestou o mecânico.
- PARA PORRA! – exigiu o guitarrista.
Sem entender nada, o mecânico freou o guincho. Os atiradores cessaram o fogo, curiosos com aquela súbita parada. Pru ergue-se e pôs metade do corpo pra fora da janela da cabine. Seus amigos tentaram detê-lo mas ele chutou até conseguir se posicionar.
- Ei! Ei! Pessoal! Parem com isso! Estamos enfrentando zumbis! Não faz sentido vocês se matarem!! Vamos nos unir e escapar juntos!!! – berrou o colorido.

     Seguiu-se um silêncio sepulcral. As pessoas observavam Pru com incredulidade até que...
- Ei! É a BANDA DELETE! – berrou alguém.
- Tá vendo, Pi? Eles nos conhecem! Tá tudo bem... – disse Pru com um sorriso largo no rosto.
- O DOBRO DE PONTOS PRA QUEM ACERTAR ESSES IDIOTAS!!!
- “O dobro de...”????
A chuva de balas varreu o guincho. Pru ficou tão furado quanto um escorredor de arroz e tombou pra fora do caminhão. Tião acelerou e fez o caminhão cantar pneu.
- Atiraram na gente! NA GENTE! – berrou Zé Lucas em pânico.
- Desgraçados! Acabaram com o Pru!... – chorava Pi.
- Malditos fãs de MPB!!!
Dobraram à direita dois quarteirões depois, entrando na avenida da orla de Santa Fé. Os fugitivos viram vários zumbis em trajes de banho, circulando pelo calçadão.
- Isso é o inferno! – murmurou Pi, enxugando as lágrimas.
- Tem luzes ali no meio da ponte! – apontou Tião.
À medida que se aproximavam puderam perceber que havia uma barreira no meio da ponte contendo alguns zumbis. Do outro lado da barreira, um grupo de militares parecia disparar contra os mortos-vivos.
- Se segurem! – disse Tião.
O guincho entrou na ponte cantando pneu e por pouco não tombou. Os músicos gritaram como menininhas histéricas, enquanto Tião gargalhava como um louco. Atraídos pelo barulho do guincho, vários zumbis se voltaram para o veículo, e tentavam agarrá-lo inutilmente. Tião arrastava os zumbis com seu caminhão e não se detinha por nada. Ou quase nada. Um zumbi obeso, com cerca de duzentos quilos de carne podre surgiu em frente ao guincho.
- Não acredito... – murmurou o mecânico.
Tião jogou o veículo para esquerda tentando desviar do zumbi baleia. Não conseguiu de todo. Bateu lateralmente no morto-vivo e tombou com o guincho, esmagando a montanha de carne. O mecânico e os músicos foram violentamente sacudidos dentro da cabine. Instantes preciosos se passaram até que os três conseguissem se recuperar minimamente e pensar em sair do guincho.
Os zumbis cercaram o veículo.
- F-fudeu... Pi... – gaguejou Zé Lucas.
- É o fim, Zé... o fim... – concordou Pi.
- Sabe o que mais me incomoda em morrer assim?
- O quê, Zé?
- É que eu... eu... gosto mesmo é de metal... Entrei nessa de colorido pra ganhar uma grana...
- ...
- E vou morrer... com essa fama de borboleta...
- Fidaputa...
Um grito enlouquecido fez gelar as veias dos coloridos. De pé, sobre a cabine tombada do guincho, Tião fazia sua escopeta cuspir chumbo sobre os zumbis.
- HHHHUUUUUAAAAAAAAAAAAAA!!!
Despertos pela loucura de Tião, os dois músicos puxaram-se para cima da carcaça do guincho. Os zumbis grunhiam e babavam litros de gosma, antecipando o banquete.
- TOMEM CHUMBO SUAS CRIAS DO INFERNO!!! – berrava Tião, salivando tanto quanto os zumbis.
- O Tião endoidou de vez... – disse Zé Lucas.
- Ele já tava por um fio faz tempo... – concordou Pi.
Pi olhou em volta e teve uma ideia.
- Ei, Zé! A gente pode pular pra amurada da ponte!
- Porra! É mesmo!
- Ei, Tião!
- MOOOOORRRAAAMMMM BESTAS-FERAS DAS PROFUNDEZAAAASS!!!
- Tião!
- VOLTEM PRO CAPETA, MONSTROS DO INFERNOOOOO!!!!
- Tião?
- TOMEM BALAAAAAAAA CRIATURAS NOJENTAAAAAAASSS!!!
- Bora, Zé...
Pi e Zé Lucas saltaram para a amurada. Quase caíram no rio abaixo, mas conseguiram se equilibrar a tempo. Tião continuava louco e surdo ao chamado dos músicos. Dois zumbis conseguiram escalar o guincho e agarraram os pés do mecânico. Tião chutou-os e tentou atirar, mas estava sem balas e a escopeta fez apenas um “CLEC” inútil. Uma linha de suor frio escorreu pelas costas do mecânico. Um dos zumbis agarrou a perna de Tião e puxou-o para baixo. O mecânico gritava e esmurrava os zumbis alucinadamente, mas logo foi sobrepujado por cerca de dez dos mortos-vivos que caíram sobre ele.
- TIÃO! – berraram os coloridos.
O som das dentadas dos zumbis no corpo de Tião podia ser nitidamente ouvido, juntamente com os grunhidos de satisfação da horda.
- Não dá pra fazer nada, Pi... A gente tem que alcançar a barreira do exército! – disse Zé Lucas.
- Tião... Chuif... vou fazer uma música pra ti... Aham... “Aonde quer que eu vááá, te levo comigoooo...”
- DEPOIS! DEPOIS! CORRE! – gritou Zé Lucas.
Os zumbis perceberam os dois coloridos sobre a amurada e começaram a voltar sua atenção para eles. Sem perder tempo, os músicos começaram a andar o mais rápido que podiam em direção aos militares, que estavam posicionados a cerca de cem metros.
- Ai, caramba... Espero que eles não atirem na gente! – disse Zé Lucas buscando equilibrar-se.
- Temos fãs no exército? – perguntou Pi.
- Ahn... Er...
- Estamos fodidos...
Na barreira feita pelo exército, dezenas de militares haviam estabelecido um perímetro de segurança e mantinham os zumbis distantes com a ação de franco atiradores. O capitão Magalhães chefiava a operação e observava o movimento na ponte com um binóculo. O sargento Zaqueu aproximou-se do capitão.

- Estamos conseguindo contê-los por enquanto, senhor. Mas se vierem em um bando muito grande... – informou o sargento.
- É, já percebi... Logo vamos isolar de vez esta ponte e recuaremos – disse o capitão – Mas, espere... Que diabos é aquilo lá?
O sargento apanhou outro binóculo e olhou na direção que o capitão indicava.

- Deus! Eles estão evoluindo, senhor... Já conseguem se equilibrar na amurada!
- Maldição! Temos que derrubá-los dali!
- É pra já, senhor!
O sargento apanhou seu rádio comunicador e acionou a frequência dos atiradores de elite.
- Espere! – disse o capitão.
- Pois não, senhor?
- Um deles está vestido como um policial local... e o outro é horrivelmente colorido...
- Colorido, senhor?
- E parecem inteiros...
- Devemos atirar, senhor?
- Deixe-me pensar...
Zé Lucas e Pi caminhavam pela amurada. Alguns zumbis vinham se aproximando lentamente e eles acelerara o que puderam. De um lado, os zumbis aguardavam, de outro, o rio centenas de metros abaixo.
- O Fucho fez bem em morrer logo... – murmurou Pi.
- Que diabo você tá dizendo? – resmungou Zé Lucas.
- Ele jamais ia conseguir se equilibrar aqui...
Disparos foram ouvidos. Balas cortaram o ar na direção dos coloridos.
E atingiram os zumbis mais próximos da dupla.
- Estão nos dando cobertura! – berrou Zé Lucas.
- Estamos SALVOS! – gritou Pi.
Os zumbis foram abatidos com precisão. Os dois músicos chegaram até a barreira e saltaram para o meio da ponte, buscando a entrada.
- PRO CHÂO! CHÃO! AGORA! – ordenou o soldado mais próximo apontando uma metralhadora para os músicos.
Sem discutir, ambos se jogaram no solo. Foram revistados por dois soldados, que constataram que eles não possuíam sinais da infecção zumbi. Foram encaminhados ao capitão Magalhães.
- Capitão, não temos como lhe agradecer! – disse Pi apertando a mão do militar com euforia.
- Agradeçam ao cabo Cordovil, um de nossos atiradores de elite. Ele é um de seus fãs e os reconheceu na ponte.
- Eu te disse que a gente tinha fã no exército... Eu te disse... – murmurou Pi em direção à Zé Lucas.
- Aff...
Uma hora depois, um helicóptero pousava no acampamento do exército trazendo Sílvio Acatauassu, o empresário da banda Delete.
- Que isso, moçada? Mando vocês sozinhos pra um show e acontece toda essa desgraça? – diz Sílvio sorrindo.
- Sílvio! Tu é um filhodaputa! Como não veio socorrer logo a gente? – pragueja Zé Lucas.
- Aham... Tive contratempos... – diz Sílvio, pensando no material de divulgação do que seria o “álbum póstumo” da banda Delete indo pelo ralo. – O que importa é que vocês estão aqui e podemos continuar a turnê!
- Continuar como? O Fucho e o Pru se fuderam! – diz Pi.
- Ora, vamos fazer um concurso em rede nacional pra encontrar novos talentos que entrem na vaga deles, é lógico! Audiência na certa!
- Tu é um tremendo dum escroto, cara... – disse Zé Lucas.
- Sou bem pago pra isso! Agora vamos daqui.
- Sílvio, tu não tem noção mesmo... O mundo se fudeu! Tá tudo louco! – disse Pi.
- E daí que o mundo tá cheio de zumbis? Antes as fãs também não corriam feito loucas atrás de vocês querendo um pedaço? Não mudou nada.
- ...
- Tu é realmente um escroto... – reafirmou Zé Lucas.
- Ah, Sílvio... Tô com uma letra nova na cabeça... – disse Pi.
- Manda aí, moleque!
- “E eu vou te encontraaaaarrrr, aonde quer que eu váááá...”
- Genial! Sucesso!
E o helicóptero partiu levando os três.

FIM

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sábado, 9 de julho de 2011

Laufeyson


Laufeyson

            O homem de sobretudo marrom permanecia quieto sob a chuva. As gotas grandes e abundantes começavam a encharcar sua roupa, mas mesmo assim ele não procurava abrigo. Protegia-se da água meramente colocando as mãos dentro dos bolsos e levantando a gola do casaco. A chuva caía no chão de terra, fazendo com que grãos de areia saltassem e colassem em seus sapatos, deixando-os sujos, mas mesmo assim ele não parecia se importar.

            Ninguém saberia dizer a quanto tempo estava parado ali, encarando o portão aberto do cemitério de Heaven West. Alguns poderiam dizer que estava ali havia horas, outros não o teriam percebido até então. Porém, todos os que o viam não podiam deixar de sentir uma estranha familiaridade com aquela figura alta e magra. Uma familiaridade periférica, como um deja vu. Nada que incomodasse realmente, apenas aquele tipo de pressentimento que as vezes nos ocorre e que longo em seguida é completamente esquecido.

            Mary, a garçonete do bar situado em frente ao cemitério, não desgrudava os olhos do estranho. Enquanto limpava o balcão com um pano sujo, mantinha seus olhos sobre a figura encapotada na chuva. Era quase hipnótico olhar aquela cena. As outras pessoas no bar conversavam distraidamente, mas todos, em maior ou em menor grau, estavam curiosos sobre o estranho na chuva. Isaac, o velho proprietário do bar, aproxima-se e dá um cutucão em Mary.

- Mary! Atenda aos clientes – diz Isaac.

- Ai! Eu estou atendendo, seu Isaac... – protesta a garçonete.

            Isaac acompanha os olhos da garçonete e vê o homem de sobretudo.

- Quem é aquele? – pergunta o velho.

- Algum maluco, com certeza. Só sendo doido pra ficar parado debaixo dessa água toda... – resmunga Mary desviando o olhar e começando a arrumar alguns copos.

            O dono do bar passa os dedos pelo bigode farto, num gesto conhecido pelos freqüentadores. Ele fazia isso sempre que ficava curioso. Era praticamente um cacoete.

- É alguém da cidade? Não reconheço... – diz Isaac estreitando os olhos, numa vã tentativa de enxergar melhor.

- Não. Pelo menos ninguém conhece... – diz Mary com displicência levantando uma bandeja com cinco canecas de chopp cheias.

- Pode ser algum maluco mesmo... – Isaac volta-se novamente para o homem de sobretudo.

              Mas ele não estava mais lá.



              Dentro do cemitério, as passarelas estavam tomadas pelas folhas secas que caíam durante a pesada chuva. Pelas canaletas, pequenos rios escorriam, levando folhas e gravetos até a boca de esgoto mais próxima. Em breve estariam entupidas. O estranho caminhava calmamente, com destino definido. O som da chuva abafava qualquer ruído, então nem mesmo seus passos eram audíveis.

            O estranho dobrou algumas vezes pelo caminho até chegar em determinada área do cemitério. Esta ala era bem mais mal-cuidada do que o restante. As lápides tinham uma aparência suja e abandonada. O homem de sobretudo parou e olhou em volta, como se certificasse de estar só naquele local. Depois, decidido, agachou-se em frente a uma lápide pequena.

            Estendeu a mão e agarrou as ervas que encobriam a lápide. Arrancou-as sem dificuldade, revelando o nome inscrito no mármore.

            GERTRUDES GRIMM
            Amada mãe
            1950 – 1997


            O homem balança a cabeça e deixa escapar um sorriso, como se estivesse se divertindo. Mas logo o sorriso é substituído por uma expressão determinada. Seus olhos possuem um brilho antigo e endurecido e, com uma expressão grave, ele começa a rabiscar com o dedo sobre a grama do túmulo, formando estranhos sinais. Seus gestos são rápidos e firmes e onde sua mão magra toca, a grama desaparece, dando lugar a um sulco.    Terminado o desenho, ele faz um gesto amplo com a mão sobre o conjunto. Num instante, as linhas brilham, variando de um amarelo intenso a um vermelho profundo. Por fim ele sussurra gentilmente:

- Grimgerde...

            Um raio ilumina os céus, como um alerta, seguido por um estrondoso trovão. O homem levanta a cabeça e deixa a água da chuva cair sobre seu rosto. Piscando de um olho, ele observa o céu nebuloso.

- Agora não.

            Ele volta-se para os símbolos reluzentes e sussurra novamente, num tom carinhoso:

- Grimgerde. Sou eu.

            Com o anoitecer se aproximando, a já precária iluminação vai cedendo lugar às sombras noturnas. Mesmo assim, o homem não se levanta e desta vez fala com firmeza na voz:

- Grimgerde, eu vim de longe e mereço a sua atenção. Eu EXIJO que me responda.

            Um uivo aterrador corta a paisagem sinistra, vindo de todo lugar e de lugar nenhum. O homem permanece agachado, com os olhos fixos nas runas desenhadas no chão.

            Súbito, as runas se revolvem, e do seio da terra, uma mão pálida emerge em busca de algo. O homem agarra a mão pelo pulso e se ergue, trazendo consigo o corpo da mulher sepultada.  O corpo, cadavérico e pálido, revestido de uma aura amarelada, oferece pouca resistência e o homem consegue ergue-lo sem esforço algum.

            O homem de sobretudo ergue o braço acima de sua cabeça, colocando a cabeça do cadáver no mesmo nível que a sua. Os olhos do cadáver não passam de uma imagem borrada sobreposta às órbitas vazias e negras do esqueleto, mesmo assim encaram o homem.

- C-como ousa... – geme a aparição.

- Como eu ouso? Esquece quem eu sou? Eu ouso tudo, minha cara Grimgerde.

- M-me deixe... descansar... – pede a alma aprisionada.

- Com certeza, mas antes temos negócios a tratar.

            O cadáver balança num esforço inútil para se livrar do homem.

- Tsc, tsc... Seu estado é deplorável, Grimgerde...

- M-malditoooo...

- Meça suas palavras, saco de vermes. Vamos ao que me interessa: onde está?

            Grimgerde revira os olhos vazios, como se buscasse evitar os olhos negros e penetrantes do homem.

- ONDE ESTÁ? – grita o homem, pela primeira vez demonstrando sua impaciência.

            O silêncio do espírito capturado irrita-o mais ainda.

- Pelas runas eu te invoquei, Grimgerde. Você não pode se recusar a me responder. Sabe disso...

- E-ela se foi... – responde o espírito, sem alternativa.

- Se foi para onde? – insiste o homem.

- Para... São Francisco... já fazem anos...

- Você não fez um bom trabalho, não é mesmo? Não cuidou dela como deveria.

- E-eu...

- Ela foi colocada sob seus cuidados, e mesmo assim, você a deixou ir... Grimgerde, você é uma inútil.

- L-liberte-meeee...

- Claro que vou liberta-la. Mas ficar sob meu domínio seria bem melhor do que apodrecer numa carcaça humana. Tsc... Já que você aceitou esse encargo, fique com ele...

            Num gesto rápido, o homem arremessa o esqueleto de volta à sepultura, fazendo-o chocar-se contra o solo. O corpo bate com violência, sendo abandonado pela aura amarelada. Por fim, resta apenas um cadáver decomposto sobre o solo.

            O homem limpa as mãos no sobretudo e olha para o céu. A chuva cessara quase completamente.

- Bastardos.

            Calmamente, ele começa a caminhar de volta à saída do cemitério e sorri.

- São Francisco não é tão longe...

Pouso




Olá.

Seja bem vindo à Cidade Lunar. Meu nome é Nery e sou seu anfitrião, há!

Com essa abertura me lembrei de “Ilha da Fantasia”, um dos seriados mais criativos que já vi. E é uma tremenda coincidência que eu lembre de “Ilha...”, pois ali cabiam vários tipos de história, a ilha era uma dimensão completa. E é isso que espero que este blog se torne: uma dimensão ampla, capaz de conter várias histórias, de gêneros e tempos diferentes, da comédia à ficção científica, da pré-história à mundos alienígenas.

Publicarei aqui alguns contos de minha autoria, alguns já publicados no Universo Nova Frequência, site que mantenho junto com amigos, e outros originais. A intenção é formar um painel com as ideias que vez ou outra se materializam em forma de texto.

Aliás, não só textos, pois eu rabisquei duas tiras em quadrinhos: a “Vida na Lan”, onde conto um pouco do dia-a-dia do trabalho (e combate armado) numa lan house; e “Vincent, o Vampiro”, onde descarrego meu mau humor contra as modernidades através das lamúrias de um nosferatu conservador radical.

Para começar os trabalhos, publico “Laufeyson”, um conto que serve de abertura para uma provável série. Basta dizer que envolve mitologia nórdica e nesse conto pude brincar com meu personagem favorito.

Bom, é isso aí. Agradeço a você que veio visitar a Cidade e que, apesar das milhares de ótimas opções que existem na net para consumir nosso tempo, dedicou alguns minutos à esta leitura. Espero que goste de “Laufeyson” e manifeste sua opinião (positiva ou negativa) e sugestões (sejam quais forem) nos comentários.

Espero que você volte muitas vezes e passe da condição de visitante para a de cidadão lunar.

Grande abraço.

Alex Nery

 
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